sexta-feira, 23 de março de 2012

Nova Sessão/O Retrato Oval

Esta é a nova sessão do blog onde vou usar os estudos feitos em sala de aula para fazer postagens explicativas sobre as obras literárias (poesia, teatro, conto, romance etc.) Espero poder ser útil para os estudantes e apreciadores de bons livros.

  O Retrato Oval (Edgar Allan Poe)


  
O château em que meu criado se arriscara a forçar entrada, em vez de me deixar, em minha desesperadora condição de ferido, passar uma noite ao relento, era uma daquelas construções mesclando melancolia e grandeza que por muito tempo carranquearam entre os Apeninos, tanto na realidade quanto na imaginação da Sra. Radcliffe. Ao que tudo indicava, fora abandonado havia pouco e temporariamente. Acomodamo-nos num dos quartos menores e menos suntuosamente mobiliados, que ficava num remoto torreão do edifício. Sua decoração era rica, porém esfarrapada e antiga. As paredes estavam forradas com tapeçarias e ornadas com diversos e multiformes troféus heráldicos, juntamente com um número inusual de espirituosas pinturas modernas em molduras de ricos arabescos dourados. Por essas pinturas, que pendiam das paredes não só de suas principais superfícies, mas de muitos recessos que a arquitetura bizarra do château fez necessários; por essas pinturas meu delírio incipiente, talvez, fizera-me tomar interesse profundo; de modo que ordenei a Pedro fechar os pesados postigos do quarto – visto que já era noite – acender as chamas de um alto candelabro que se encontrava à cabeceira de minha cama e abrir amplamente as cortinas franjadas de veludo negro que a envolviam. Desejei que tudo isso fosse feito para que pudesse abandonar-me, ao menos alternativamente, se não adormecesse, à contemplação das pinturas e à leitura atenta de um pequeno volume encontrado sobre o travesseiro, que se propunha a criticá-las e descrevê-las.
Por longo, longo tempo li, e com devoção e dedicação contemplei-as. Rápidas e gloriosas, as horas voaram e a meia-noite profunda veio. A posição do candelabro me desagradava, e estendendo a mão com dificuldade, em vez de perturbar meu criado adormecido, ajeitei-o a fim de lançar seus raios de luz mais em cheio sobre o livro.
Mas a ação produziu um efeito completamente imprevisto. Os raios das numerosas velas (pois eram muitas) agora caíam num nicho do quarto que até o momento estivera mergulhado em profunda sombra por uma das colunas da cama. Assim, vi sob a luz vívida um quadro não notado antes. Era o retrato de uma jovem, quase mulher feita. Olhei a pintura apressadamente e fechei os olhos. Não foi a princípio claro para minha própria percepção por que fiz isso. Todavia, enquanto minhas pálpebras permaneciam dessa forma fechadas, revi na mente a reação de fechá-las. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar – para me certificar de que minha vista não me enganara – para acalmar e dominar minha fantasia para uma observação mais calma e segura. Momentos depois, novamente olhei fixamente a pintura.O que agora eu via, certamente não podia e não queria duvidar, pois o primeiro clarão das velas sobre a tela dissipara o estupor de sonho que me roubava os sentidos, despertando-me imediatamente à realidade.
O retrato, já o disse, era o de uma jovem. Uma mera cabeça e ombros, feitos à maneira denominada tecnicamente de vinheta, muito ao estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o busto e as pontas dos radiantes cabelos se dissolviam imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que formava o fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à mourisca. Como objeto artístico, nada poderia ser mais admirável do que aquela pintura em si. Mas não seria a elaboração da obra nem a beleza imortal daquela face o que tão repentinamente e com veemência comoveu-me. Tampouco teria minha fantasia, sacudida de seu meio-sono, tomado a cabeça pela de uma pessoa viva. Vi logo que as peculiaridades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado instantaneamente tal idéia – e até mesmo evitado sua cogitação momentânea. Pensando seriamente acerca desses pontos, permaneci, talvez uma hora, meio sentado, meio reclinado, com minha vista pregada ao retrato. Enfim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, caí de costas na cama. Descobrira o feitiço do quadro numa absoluta naturalidade de expressão, a qual primeiro espantou-me e por fim me confundiu, dominou-me e me aterrorizou. Com profundo e reverente temor, recoloquei o candelabro na posição anterior. Sendo a causa de minha profunda agitação colocada assim fora de vista, busquei avidamente o volume que tratava das pinturas e suas histórias. Dirigindo-me ao número que designava o retrato oval, li as vagas e singulares palavras que se seguem:
“Era uma donzela de raríssima beleza, não mais encantadora do que cheia de alegria. Má foi a hora em que viu, amou e desposou o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, e tendo já em sua Arte uma esposa; ela, uma donzela de raríssima beleza, não mais encantadora do que cheia de alegria; toda luz e sorrisos, e travessa como uma corça nova; amando e acarinhando todas as coisas; odiando apenas a Arte, sua rival; temendo só a paleta, os pincéis e outros desfavoráveis instrumentos que a privavam do rosto do amado. Era, portanto, uma coisa terrível para essa dama ouvir o pintor falar de seu desejo de retratar justo sua jovem esposa. No entanto, ela era humilde e obediente, e posou submissa por muitas semanas na escura e alta câmara do torreão, onde a luz caía somente do teto sobre a pálida tela. Mas ele, o pintor, glorificava-se com sua obra, que continuava hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, impetuoso e taciturno, que se perdia em devaneios; de maneira que não queria ver que a luz espectral que caía naquele torreão isolado debilitava a saúde e a vivacidade de sua esposa, que definhava visivelmente para todos, exceto para ele. Contudo, ela continuava a sorrir imóvel, docilmente, porque viu que o pintor (que tinha grande renome) adquiriu um fervoroso e ardente prazer em sua tarefa e trabalhava dia e noite para pintar a que tanto o amava, aquela que a cada dia ficava mais desalentada e fraca. E, em verdade, alguns que viram o retrato falaram, em voz baixa, de sua semelhança como de uma poderosa maravilha, e uma prova não só da força do pintor como de seu profundo amor pela qual ele pintava tão insuperavelmente bem. Finalmente, como o trabalho se aproximava da conclusão, ninguém mais foi admitido no torreão, pois o pintor enlouquecera com o ardor da obra, raramente desviando os olhos da tela, mesmo para olhar o rosto da esposa. Não queria ver que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces da que posava junto a ele. E quando muitas semanas nocivas se passaram e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada na boca e um tom nos olhos, o espírito da dama novamente bruxuleou como a chama no bocal da lâmpada. Então, a pincelada foi dada e o tom aplicado, e, por um momento, o pintor se deteve extasiado diante da obra em que trabalhara. Porém, em seguida, enquanto ainda a contemplava, ficou trêmulo, muito pálido e espantado, exclamando em voz alta: ‘Isto é de fato a própria Vida!’ Voltou-se repentinamente para olhar a amada: – Estava morta!”
  
Retirado de: arquivos.com

 Estudando a obra




Há traços presentes em toda obra de Edgar Allan Poe que estão presentes nesse conto e são fundamentais.
Em um primeiro momento podemos identificar um fato pressuposto que é o protagonista chegar ao castelo por conta de um ferimento e esse ferimento é a segunda característica das obras de Poe que aparece, pois sempre estão aniquiladas por doenças ou, como no caso deste conto, de ferimentos.
É notável a presença, ou melhor, ausência de algo notável nas obras de Poe: O protagonista não tem nome assim como a maioria de suas personagens.
Em todo o conto há a presença de duplos como os dois exemplos citados abaixo:
- A sala escura e a única fonte de luz que entra por ela;
- A vida que vai surgindo na pintura e a que se esvai da modelo;
- A modelo que vai sendo eternizada na pintura e vai sendo sacrificada na realidade.
As personagens de Poe são constantemente torturadas por um mundo infernal, fato que pode ser exemplificado pelo pintor que enlouquece devido à obsessão de chegar à perfeição, da modelo que tem como a arte sua única rival e acaba morrendo por ela e do protagonista que vai desesperadamente tentar desvendar quem é aquela moça e depois é atormentado ao saber o que aconteceu.
O conto é narrado em primeira pessoa, o que pode ser justificado pelo fato de ser um conto (Neo) Romântico e nesta escola literária o ser humano volta para si mesmo.
O tempo da narrativa, outro traço das obras de Poe, é outro aspecto importante da obra: o ponto alto acontece à meia noite que é a hora indefinida, é a hora de mistério. Nessa hora o protagonista está com o candelabro em mãos e ele ilumina o retrato oval. O inesperado acontece e, com a luz surge a revelação do enigma que pouco a pouco vai sendo revelado com a leitura do livrinho.
De uma pessoa aniquilada, o protagonista vai passando para um homem vigoroso, obcecado para desvendar o retrato e a beleza da jovem, e depois, volta a aniquilar-se com a descoberta da morte da modelo. Aí vemos outra característica de suas obras: De um estado penoso a personagem passa para um de esperança e logo volta a definhar.
Um detalhe interessante que podemos citar é a escolha dos olhos e da boca como traços restantes para a finalização do desenho pois ambos são símbolos máximos de feminilidade e de vida, enquanto os olhos adquiriam brilho e a boca, um tom rosado, os olhos da modelo íam se apagando e a boca perdendo a cor.
Da história d'O Retrato Oval podemos criar várias hipóteses sobre o que aconteceu antes e depois da morte da modelo e o encontro do retrato:
- Como e por que o protagonista estava ferido?
- O que o pintor fez depois que se deparou com a sua esposa morta?
- O que o protagonista fez depois de saber da história da moça do retrato?
- De quem era aquele pequeno quarto?
- De quem era o castelo?
- Quem escreveu o livrinho e por que ele estava em cima da cama?
Para encerrar o post sobre O Retrato Oval, abaixo está um curta-metragem espanhol reproduzindo este conto.

2 comentários:

  1. Oi Yuriko! Parabéns pela análise! Você sabe de quem é a tradução desse conto?

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